três poemas de diane wakoski (1937 — )

Filippe Vasconcellos
3 min readAug 3, 2024

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ouro

para El-Rei de Espanha

te conheci na hora errada.
teu rosto era um relógio de bolso,
pesado e dourado,
e eu, uma mulher de vestido fino,
vestido sem bolsos.

me apaixonei pela estação de trem,
pelo imenso relógio pendurado sobre
a multidão,
pendurado como o sol no céu do inverno,
ou como uma maçã amarela se pendura no galho
ao final do
outono;
uma multidão de nós,
estranhos,
olhando para cima,
como carretéis de linha multicoloridos num balaio;
vem a tesoura — um trem –
e nos corta fora de um lugar,
pra nos costurar, com linha férrea, em outro.
sigo de olho no relógio,
sabendo que não te encontrarei aqui na estação de trem,
mas imaginando que puxas
o zíper do meu vestido pra cima
antes que eu saia de casa de manhã,
encostando nos meus braços nus,
e tomamos nosso café, olhando janela afora
enquanto nasce o sol,
vendo as horas dolorosamente
neste sol,
que se transformou num imenso relógio de bolso,
quente demais pra segurar na mão.

ontem te pedi que me indicasse o caminho.
teu rosto feito bússola
com o ponteiro, qual galho, temperamental e arredio,
movendo-se do leste ao norte,
errante,
enquanto eu buscava o sul,
precisando de calor e sol,
com medo do teu lado norte,
outono-invernal,
uma árvore nua,
montanha nevada,
caverna de gelo,
avalanche,
mas vi
minhas próprias mãos,
ponteiros dourados, delgados,
movendo-se imperceptivelmente,
a cada ano fazendo a volta dos mesmos números, igualmente dourados,
e o velho fuso que os movia,
ainda mais delgado,
oculto pelo meu próprio rosto.

te conheci na hora errada.
tarde demais pra amar.
teu rosto era um relógio de bolso dourado, a me recordar o passado,
bússola a mostrar que eu não tinha o norte magnético,
só os pontos cardeais verdadeiros, aqueles derivados das estrelas;
os mapas e horas solitários que os astrônomos
registram.

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prata

como eu quero sentar
à mesa e pegar uma colher pesada de prata para tomar sopa.
por que
quero garfos, facas, colheres, utensílios pesados, de prata
de lei? por que
quero tanto metal na minha boca?

faça as perguntas erradas e
só ouvirá tolices como resposta.
é claro que eu não quero colocar metal — nem um metal tão lindo — na
minha boca.
o que eu quero
e segurá-lo e, de alguma maneira, transformar o ritual do comer
em algo não orgânico,
além do corpo,
além do cagar,
além da putrefação,
além da morte. é claro
que eu quero prata bonita, para que eu possa fingir que nunca precisarei
morrer.

c. 1976

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ao jogar âmbar no poço da lua

um rosto me fita
de dentro d’água,
um leão sacudindo a juba e rugindo
de ódio dessa jaula molhada.
enfio minha mão
na água,
como o tronco delgado de uma palmeira
ao longe.
na água
tudo some
como uma criança na multidão.
mas a lua é a morte.
as rochas geladas dela me empanturram, como se eu tivesse
engolido a canção dos pássaros
e acordado numa árvore.

quando o sol morreu
ele ainda durou milênios
dos nossos anos.
agora, o estudam os mágicos,
enquanto os poetas partem rumo à lua.
meu leão segue preso
na água
que é o desejo.
enfio nela minha mão
para resgatá-lo,
mas minha mão não joga mais tênis,
nem golfe,
nem toca piano;
é uma mão inútil
para um leão.

o siri sentado no fundo do poço
vê o leão lá no alto,
com olhos pedunculados que fogem ao alcance dos meus braços.
ele
está no seu habitat natural.
não entende nossas lutas.
a música e a poesia
só chegam aos ouvidos
dos angustiados.
o siri, tranquilo,
não precisa de nada
além do rugir do mar
e do bater das ondas,
mesmo no silêncio do poço.

1972

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